«Fábula
imoral»
Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
Não se poisava, não senhor, assim sem mais
nem menos em campo de milho alheio. Só mesmo para apanhar chumbada da
grossa pelo lombo! Que lhe ficasse de emenda... Ámen!
A passarada dispersou, cuspindo para o lado
um «aaameeeen» arrastado, em uníssono, tão cheio de segundas intenções
como bola de bilhar a três tabelas.
O Pardal Velho, bicho endurecido por
carradas de vida e má-sorte a requerer maior astúcia, tinha falado bem,
sim senhor, no discurso fúnebre desse pobre diabo do Vesgo, passado desta
para outra com cinco chumbos no papo guloso e descuidado, que lhos enfiara
o Ti Manel, que nestas coisas não se perdia nem era para tretas.
Pego fora o Vesgo, que se lixou.
Pena-de-Vento concordava, ao seu jeito,
apenas que sim, com a cabeça; mas os seus olhitos, que mais pareciam duas
brasas em lareira remexida, não despegavam, como carraças, das espigas
enormes do sacana do Ti Manel, recheadas ainda de grão leitoso e suculento.
Só a mãe lhe adivinhou a teimosia, a insensatez.
Pena-de-Vento que me fazes velha! Por amor
do teu pai que o Maltês levou nas garras malditas, tem-me tento com o
velho! Para quê, meu filho, o voo picado, essa luxúria do espectáculo
temerário? Então muito mais esperto não serias tu se papasses antes o
milho pela calada, entrando sorrateiro, como todos, pelo claro-escuro
entrecortado da ramada?!
Qual quê! Era o sangue novo que lhe exigia
o perigo; o gosto amargo do risco calculado; o prazer do voo planado em
chilreios de guerra; a basófia de se deixar cair, picado e rápido como
um raio, sobre o milheiral da aventura e dos grãos de oiro.
Só que, ao Ti Manel, ninguém comia as papas
na cabeça: Pena-de-Vento, ainda não era sol posto, acabou como a tarde,
numa sombra; quatro balázios bem ferrados na arrogância proibida.