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 Manuel Abranches de Soveral

 

 

«O bom ladrão»


Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio do Porto» 

O bom ladrão morria angustiado no equívoco da sua própria denominação: nunca fora bom, nem tão-pouco ladrão... 

É certo que aquele seu jeito, que cultivava, de prometer o que tinha e o que não tinha, sem nunca passar disso, lhe deixava por toda a parte um rasto doirado de liberalidade a correr de boca em boca na consabida progressão geométrica de quem conta um conto aumenta um ponto. 

Mas isso era outra história! Vinha-lhe do sangue, do pai que fora, no seu tempo, exímio e celebrado vendedor da banha da cobra. É que, vendo bem as coisas, c'os diabos, um homem para ser bom, nesta acepção de simpático, não custa nada, e basta apenas saber-se libertar de inibidores pueridos de consciência. 

O mal é que fora aí, precisamente, que acabara por dar com o burricos na água: a desonestidade total e descarada que lhe permitira granjear essa simpatia popular, criara nas pessoas, ao fim e ao cabo, a ideia errada de que ele havia de ser um refinado ladrão, ainda que bom. 

A verdade, verdadinha, porém, é que nunca roubara sequer uma galinha. Até porque não gostava de canja. A sua vida, ganhara-a, é certo, à custa de expedientes sub-reptícios e mais ou menos obscuros. Mas roubar, preto no branco, isso é que nunca roubara ninguém. 

E, na sua agonia histórica, lançou ainda um breve olhar pelo horizonte privilegiado que se desfrutava daquele Calvário final, repleto de fariseus, ocorrendo-lhe então o conselho avisado, mas não seguido, de um tio materno, que nos tempos da juventude fora festejado bobo da corte: Meu rapaz, quem te avisa teu amigo é! Mete-te na política, ou ainda acabas mal...

 
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