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 Manuel Abranches de Soveral

 

 

«A roda»


Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio do Porto»

O Zé Diogo é bem um tipo estranho. Muito metido consigo mesmo, de aparência calma e enigmática, dá, a quem o vê pela primeira vez, uma ideia de debilidade que nem de longe nem de perto corresponde à sua imensa força interior.

Vagamente bacharel em não sei quantos cursos, a transpirar por todos os poros a insatisfação intelectual que se depreende desta sua via sacra pelo ensino português, o Zé Diogo é assim uma daquelas pessoas que volta e meia aparecem e toda a gente olha com um misto de inveja e desdém; um daqueles espíritos que ninguém compreende, mas que se impõe naturalmente, em qualquer círculo de amigos, pela lucidez com que aborda as mais variadas questões e, principalmente, pela criatividade que empresta às suas análises.

Da geração de 50, ele não tem nada a ver - e cultiva até uma certa raiva a quem tem - com o que está para trás: com o Estado Novo, com Abril, com todo um sem-número de traumas e bloqueamentos em que a meia-idade portuguesa e os seus delfins mergulham e normalmente se perdem.

Outro dia fui encontrá-lo - numa daquelas soalheiras manhãs de Domingo em que a «baixa» do Porto se esvazia das pessoas e da lufa-lufa dum trânsito insuportável - sentado num banco do pequeno jardim da Praça do Infante, a espreitar o rio e o casario antigo que por ali se desdobra em cascatas por descobrir. Seriam umas dez horas da manhã.

Ali assim, com o seu cabelo loiro, curto, a brilhar ao sol levante - era um desses dias esplêndidos que a primavera deixou esquecidos neste Inverno liberal -, a dois passos de uma das mais belas estátuas portuenses e com o Palácio da Bolsa imponentemente adormecido à sua ilharga, o Zé Diogo sobressaía bem em toda a sua verdadeira dimensão. E a estranheza da sua maneira de ser e estar no quotidiano que a contra-gosto vamos forjando, como que desaparecia por encanto.

Ao ver-me, sorriu; tornando ainda mais notório aquele seu lábio inferior petulantemente caído dos Habsburgos. Estou convencido de que gosta de conversar comigo.

Salvé, oh Jornalista! - atirou-me, com o seu jeito que só não é afectado por lhe ser tão natural, tão próprio. E antes que eu tivesse tempo para fazer outra coisa senão sorrir-lhe também, à laia de retribuição da saudação, pôs-me logo, de chofre, a par das cogitações em que se embrenhava: A questão é a roda!...

A roda?!..., inquiri eu, silenciosamente, com um leve arquear das sobrancelhas.

É! O mal dos intelectuais - esclareceu o Zé Diogo, a olhar fixamente um rafeiro que se esgueirava por uma das muitas ruas tortuosas que desaguavam um repousante silêncio na praça deserta - não é tanto a sua constante procura de novas respostas para as questões que se lhes põem, mas o facto de não adaptarem a uma roda o movimento que necessariamente resulta dessa procura. Seriam assim como uma espécie de corrente de bicicleta, que do seu movimento faz resultar um avanço, um progresso; que, enfim, leva sempre a qualquer parte...

E de novo o Zé Diogo me sorriu, abertamente: É isso, meu caro Jornalista, é isso: a roda!

 

 
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