«A
roda»
Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
O Zé Diogo é bem um tipo estranho. Muito
metido consigo mesmo, de aparência calma e enigmática, dá, a quem o vê
pela primeira vez, uma ideia de debilidade que nem de longe nem de perto
corresponde à sua imensa força interior.
Vagamente bacharel em não sei quantos cursos,
a transpirar por todos os poros a insatisfação intelectual que se depreende
desta sua via sacra pelo ensino português, o Zé Diogo é assim uma daquelas
pessoas que volta e meia aparecem e toda a gente olha com um misto de
inveja e desdém; um daqueles espíritos que ninguém compreende, mas que
se impõe naturalmente, em qualquer círculo de amigos, pela lucidez com
que aborda as mais variadas questões e, principalmente, pela criatividade
que empresta às suas análises.
Da geração de 50, ele não tem nada a ver
- e cultiva até uma certa raiva a quem tem - com o que está para trás:
com o Estado Novo, com Abril, com todo um sem-número de traumas e bloqueamentos
em que a meia-idade portuguesa e os seus delfins mergulham e normalmente
se perdem.
Outro dia fui encontrá-lo - numa daquelas
soalheiras manhãs de Domingo em que a «baixa» do Porto se esvazia das
pessoas e da lufa-lufa dum trânsito insuportável - sentado num banco do
pequeno jardim da Praça do Infante, a espreitar o rio e o casario antigo
que por ali se desdobra em cascatas por descobrir. Seriam umas dez horas
da manhã.
Ali assim, com o seu cabelo loiro, curto,
a brilhar ao sol levante - era um desses dias esplêndidos que a primavera
deixou esquecidos neste Inverno liberal -, a dois passos de uma das mais
belas estátuas portuenses e com o Palácio da Bolsa imponentemente adormecido
à sua ilharga, o Zé Diogo sobressaía bem em toda a sua verdadeira dimensão.
E a estranheza da sua maneira de ser e estar no quotidiano que a contra-gosto
vamos forjando, como que desaparecia por encanto.
Ao ver-me, sorriu; tornando ainda mais notório
aquele seu lábio inferior petulantemente caído dos Habsburgos. Estou convencido
de que gosta de conversar comigo.
Salvé, oh Jornalista! - atirou-me, com o
seu jeito que só não é afectado por lhe ser tão natural, tão próprio.
E antes que eu tivesse tempo para fazer outra coisa senão sorrir-lhe também,
à laia de retribuição da saudação, pôs-me logo, de chofre, a par das cogitações
em que se embrenhava: A questão é a roda!...
A roda?!..., inquiri eu, silenciosamente,
com um leve arquear das sobrancelhas.
É! O mal dos intelectuais - esclareceu o
Zé Diogo, a olhar fixamente um rafeiro que se esgueirava por uma das muitas
ruas tortuosas que desaguavam um repousante silêncio na praça deserta
- não é tanto a sua constante procura de novas respostas para as questões
que se lhes põem, mas o facto de não adaptarem a uma roda o movimento
que necessariamente resulta dessa procura. Seriam assim como uma espécie
de corrente de bicicleta, que do seu movimento faz resultar um avanço,
um progresso; que, enfim, leva sempre a qualquer parte...
E de novo o Zé Diogo me sorriu, abertamente:
É isso, meu caro Jornalista, é isso: a roda!