«No
tempo em que os animais falam»
Pequeno conto publicado na revista «O Tripeiro» em Agosto de 1982
- V. Ex.ª dá licença?... O Asno reviu-se no grande espelho ao fundo; experimentou a reverência,
profunda; ensaiou o sorriso amarelo. Convinha estar sempre atento, não
deixar enferrujar a sua arma mais eficaz, essa chave que lhe abrira portas
com que nunca sonhara. Susteve depois a respiração até às lágrimas, abriu
muito os olhos assim humedecidos e deixou que se lhe estampasse no focinho
aquele ar que sabia fazer de incomensurável devoção, de infinita lealdade.
Perfeito!... Contudo, havia ainda um não sei quê de errado... Ah! As orelhas...
Num supremo esforço de pose, alquebrou-as; humilhou-se. Agora, sim! Podia
entrar...
A Raposa olhou-o, impaciente. Então que há, meu pedaço de Asno! Curvando-se um pouco mais, o
burro anunciou-lhe que Sua Excelência estaria ali dentro de cinco minutos,
o mais tardar. Bem! Bem! - volveu a raposa - o Lobo julga-se
muito esperto em vir assim, sem avisar, mas não nos caça... Num ápice
recolheu alguns papéis poisados na sua vasta secretária e guardou-os num
cofre escondido atrás de uns coelhos pintados a óleo. Mal Sua Excelência
chegue - acrescentou para o burro especado - corres junto do seu
secretário, essa cavalgadura tua parente, para saber o que há. Se for
preciso, oferece-lhe um lugar na Alfândega...
Mal o Asno saiu, a Raposa
sentou-se, afivelou um ar atarefado, sacou duma caneta e iniciou a assinatura
dum longo maço de despachos pendentes. Passados dois minutos o Asno anunciava: Sua Excelência o Lobo...
A Raposa desdobrou-se em
espantos: Vossa Senhoria já chegou?! Não o esperava tão cedo... O
Lobo não disse nada, rondou-lhe a secretária, olhou demoradamente os despachos,
e só depois se dignou rosnar: Muito trabalho, hem?... O temível
olhar amarelo-fogo de Sua Senhoria percorreu a Raposa, de alto a baixo.
Depois o Lobo pareceu descontrair-se, por pouco não sorriu, indo por fim
aninhar-se no mais amplo sofá.
A irmandade está a perder
o controlo de demasiadas coisas - rosnou. Ao aperceber-se de que o
Lobo, afinal, nada suspeitava sobre o golpe de Estado que preparava, a
Raposa sossegou, aliviada. É - disse por dizer - a corrupção
dana tudo... O Lobo saltou do sofá, os pêlos da nuca eriçados, um
olhar assassino que gelou a Raposa. Depois caiu em si, conteve-se, disfarçou,
voltou a aninhar-se. Mas a dúvida martelava-lhe o cérebro: Será que este
estupor sabe de tudo?!...
O imperceptível aguçar de
orelhas não chegou para denunciar a euforia da Raposa. Com que então -
pensou - temos moiro na costa... Arquitectando imediatamente a cartada
que agora podia jogar, apressou-se a mudar, aparentemente, de assunto. Sim, Vossa Senhoria tem toda a razão. A Irmandade está a perder poder.
Mas ao contrário do que à primeira vista possa parecer, o perigo não vem
da Colegiada. Apesar de oposição ao nosso Governo, eles fazem afinal parte
do sistema. Não! Vossa Senhoria há-de concordar que o verdadeiro perigo
está nos «outsiders»!...
Nos «outsiders»? - espantou-se o Lobo. A Raposa sorriu. A coisa estava-lhe a sair bem.
Com sorte, ainda conseguiria virar o Lobo contra os únicos que afinal
o poderiam defender, opondo-se ao golpe que preparava. Sim, nos «outsiders»!
Vossa Senhoria repare na Águia e no Leão, por exemplo. Dizem-se nosso
apoiantes e nós permitimo-lhes um poder e um prestígio que aumentam dia
a dia. Mas eles não aceitam entrar para a Irmandade! Aproveitando-se dessa
monomania da independência, exercem o poder segundo a sua consciência,
como eles dizem. Vossa Senhoria, afinal, não os controla, porque eles
não se sujeitam aos interesse da Irmandade.
O Lobo ouvia, atento. Humildemente,
como se tivesse pejo de o dizer, a Raposa deu o golpe de misericórdia
em todas as possíveis resistências: Ainda outro dia a Hiena se me veio
queixar. Ela, há tanto tempo na Irmandade, tinha afinal de obedecer ao
Leão que, não só não é dos nossos, como se atreve a dizer aos quatro ventos
que acima de Vosso Senhoria está a Lei... O Lobo estremeceu, involuntariamente.
A coisa estava a tornar-se perigosa. O estupor da Raposa tinha razão.
Era preciso aparar as asas à Águia e cortar as garras ao Leão. Levantou-se
e saiu. Da porta, sem se virar, rosnou: Manda-lhes uma ficha de inscrição!
E avisa-os que, se não assinarem, saltam fora da carroça...