«Metamorfose»
Pequeno conto publicado na rubrica «Gavetas do Tempo» do jornal «O Comércio
do Porto»
No horizonte onde costumava
perfilar as suas inquietações mais pertinentes, uma névoa indistinta invadira
o espaço e colocara no tempo um sinal perceptível a delimitar com rigor
o passado, que lhe era anterior, e o futuro, que já não sabia forjar.
Nada mais era inteligível.
O trânsito normal do seu
quotidiano escoava-se agora por exclusão de partes - os sinais de proibido,
sentido único ou obrigatório, o corredor bus e o stop, traçavam
de uma forma exacta, inexorável, um destino predestinado que parecia amável. A organização perdurava
já sobre todas as coisas.
E as silhuetas inquietantes
que outrora retalhavam como lâminas a sua existência quase imberbe, mas
poderosa e livre, perdiam-se cada vez mais na lonjura da névoa, só de
quando em vez recordadas num grito vital que o seu bom senso, embora tentasse,
não lograra ainda amordaçar por completo.
Mas quanto mais se lhe enevoava
o espaço transparente perdido algures, mais clara e radiosa lhe parecia
a manhã, tão cedo e já poluída, da sua exclusão de partes.
O amarelo anticéptico e
anti-séptico do plástico dava em redor uma imagem em simultâneo lavada
e colorida, que tão radiosamente contrastava com toda a restante série
de cores que o labor da fábrica inventava num frenesim.
E o que separa, afinal,
o real do aparente, a verdade do erro? Uma impressão tão ténue, tão da
intuição, que apenas a convicção da sua juventude agigantara com imperatividade
e ardor.
Bastaria um pequeno esforço
contemporizador, e, num ápice, o aparente se transformaria na única realidade
possível. Ah!, e como o erro é fácil, cómodo, pacífico...